domingo, 8 de janeiro de 2017

Detour






Tal como sucede com outros films noirs, entramos no universo de Detour pela voz off. Um homem solitário, num diner à beira da estrada, narra, em flashback, a sua história. É uma canção a tocar na jukebox que nos leva, através de um extraordinário raccord, ao passado de Al Roberts, canção que ele (pianista) e Sue (cantora e sua noiva) interpretavam no nightclub onde trabalhavam. 




Roberts institui-se, desde cedo, como um homem isento de ambições e de acção; é ela que decide partir para Los Angeles em busca de fama, determinada em perseguir o seu sonho (mesmo quando ele a tenta dissuadir); dir-se-ia que ela pressente já o fracasso das suas vidas enquanto ele, indiferente, prefere resguardar-se na segurança de uma vida sem sobressaltos.
Ironicamente, é quando o pianista decide agir que os seus problemas começam. Porque decide partir, cada espectador o dirá, neste filme em que a complexidade se dissimula de modo brilhante atrás de uma falsa simplicidade (a obra levanta inúmeras questões que não cabem aqui por imposições de espaço). Roberts telefona à noiva: vai partir para LA e em breve estarão casados (ela que é agora  empregada de mesa). 



À falta de dinheiro, a viagem será feita a pé e à boleia. E é na viagem que Roberts vai ter dois encontros fatais. O primeiro, com um apostador, Charles Haskell Jr, que lhe dá boleia no seu descapotável. A sorte de ter arranjado quem o leve até LA em breve se transforma em infortúnio. É noite, começa a chover e, ao volante, com o dono a dormir no lugar do morto, Roberts vê-se obrigado a parar para colocar a capota; abre a porta do carro e Haskell Jr cai, batendo com a cabeça numa pedra (mas não está já morto? E por que razão o vemos a tomar comprimidos?). Roberts entra em pânico (quem acreditará na sua história?) ou descobre ali uma oportunidade de mudar de vida (por que razão não iriam acreditar no seu relato?). Troca então de identidade, matando Al Roberts e ressuscitando Haskell Jr - com as roupas, o dinheiro, os documentos e o descapotável. 
O segundo encontro dá-se quando Roberts-Haskell pára numa bomba de gasolina. Por impulso ou vaidade, oferece boleia a uma mulher (Vera, fabulosa Ann Savage, cujo apelido bem poderia ser o da personagem que interpreta). O comportamento desta rima com o de Haskell Jr; o facto de se sentar no lugar que este ocupara e de encostar a cabeça para dormir, tal como ele o havia feito, prenuncia que, de algum modo, também ela se encontra atingida pela morte - na realidade, tal como Haskell, Vera encontra-se minada pela doença. E ambos contagiam o pianista: todos estão condenados à destruição.
O misto de sentimentos que Vera provoca em Roberts é interrompido quando, de súbito, ela lhe atira: “Where did you leave his body? Where did you leave the owner of this car?” Na viagem, Haskell mostrara a Roberts os arranhões feitos por uma mulher a quem dera boleia pouco antes de o acolher (e que tivera de expulsar) - e é precisamente a essa mulher que “Haskell” vai dar de novo boleia. Falsamente inofensiva, Vera não deixa escapar Roberts, assumindo-se como uma atípica femme fatale: falta-lhe a beleza e a aura sexual, mas sobra-lhe todo o poder destrutivo. A sua voz é autoritária, áspera e a última palavra é sempre a sua. Porém, tal como Roberts, é uma personagem complexa: adivinha-se nela um passado conturbado que lança a sua sombra sobre o presente e o seu comportamento é imprevisível. Por vezes, a rispidez dá lugar a uma certa ternura e, mesmo, a uma fugaz (e fracassada) tentativa de sedução (quando, já em LA, pretendem ser Mr e Mrs Haskell). 



É apenas através de um acidente (o segundo da viagem) que Roberts a conseguirá “derrotar” - embora aqui a derrota exclua qualquer noção de vitória; cena absolutamente assombrosa na sua antecipação e encenação, a morte de Vera é uma das mais extraordinárias da história do cinema. Ao decidir, por fim, impor-se, Roberts é atingido pelo golpe fatal “do destino ou de outra força misteriosa”, como afirma. Impossibilitado de permanecer em LA, não pode voltar para Nova Iorque; não pode iniciar uma nova vida nem recuperar o passado. Encontra-se duplamente morto: sem o dinheiro, as roupas, os documentos e o carro, não é Haskell, mas também não é Al Roberts, que ficou morto à beira de uma estrada. Sem identidade e sem lugar de pertença, está condenado a errar pelas estradas sem fim que atravessam a América.  
Detour é um filme de estrada (um “road noir”): as personagens são impelidas para o movimento; todas se dirigem de Este para Oeste, com a Califórnia como destino, todas perseguem o mito da fronteira (e o seu valor simbólico: o Oeste como terra de liberdade, onde o indivíduo pode realizar-se em todo o seu potencial), todas perseguem sonhos e todas, sem excepção, são destruídas (física ou psicologicamente): o filme dinamita, de forma impiedosa. o mito do sonho Americano. 
Detour foi rodado em condições precárias de orçamento e de tempo. O engenho (leia-se, o génio) de Edgar G. Ulmer fez dele uma obra-prima. Uma obra-prima do film noir, da série B e de toda a história do cinema.


Edgar G. Ulmer, Detour (EUA, 1945)


(Texto publicado no Argumento, nº 141)


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