Aparentemente,
o título parecer revelar tudo: Funeral
Parade of Roses: morte e sexo. No entanto, apenas diz uma fração do que o
filme na realidade é; tal como a personagem principal, o título revela-se
enganador e incompleto na sua aparência – a aparência é, aliás, fulcral para
Eddie e para os restantes travestis que povoam o mundo em que se move. Não será
por acaso que, na cena em que este se encontra numa exposição, se ouve uma voz gravada
que discorre sobre o uso de máscaras na vida de cada indivíduo. Porém, à
aparência contrapõe-se a autenticidade: para os travestis esta dicotomia (e o
filme assenta numa série delas) é mais do que natural: “Não poderia ser de
outro modo”, “Nasci assim”.
Com
uma narrativa apoiada em Édipo Rei e
transposta para o underground de
Tóquio, Funeral Parade of Roses gira
à volta de Eddie, um jovem travesti que trabalha no (apropriadamente chamado)
Bar Genet, e do triângulo amoroso que forma com Leda (a Madame do bar) e Goda (o
dono, também traficante de droga). Num belo preto e branco, a história de Eddie
mistura-se com a história do país, ambas atingidas por convulsões internas;
assim como a política deve ser feita por todos, em cada dia, não se confinando
aos seus profissionais, também a ortodoxia sexual deve ser posta em causa e
outras sexualidades devem ser trazidas para a luz do dia. E, claro, também
novos modos de filmar e de construir um filme se impõem.
Rodado
em 1968 e estreado no ano seguinte, Funeral
Parade of Roses impõe-se como uma obra do seu tempo e, em simultâneo, à
frente dele; convocando a turbulência político-social que assolou o Japão (e o Ocidente)
no final dos anos 60 e várias vanguardas artísticas (Dada, Surrealismo, Nouvelle Vague, cinema experimental – Jonas
Mekas é, aliás, citado no filme), Toshio Matsumoto junta-lhes banda desenhada,
pintura, happenings, música, citações
e símbolos vários para se sair, no final, com uma obra heteróclita, iconoclasta e soberba. O próprio modo
de filmar é difuso e desorientador, incorporando em si significativas
disrupções: cenas em sobre-exposição,
rápidos e repentinos inserts, imagens
de televisão distorcidas, fotografia, muito grandes planos, imagem e música em
aceleração, súbita paragem do filme, interrupção da banda sonora, etc.
O
carácter visual anárquico é acompanhado / acompanha a pulverização da estrutura
diegética da obra, nem sempre fácil de apreender, já que a história de Eddie,
dada em episódios curtos e sem aparente relação entre si, choca com outras
histórias e cenas: a rodagem de um filme erótico / pornográfico (no qual Eddie
parece ser personagem principal), manifestações na rua, entrevistas (numa
aproximação ao documentário) com pessoas exteriores ao filme e com os seus actores
(discorrendo sobre travestismo e sobre o filme que estão a rodar), etc. O
próprio filme dentro do filme também contribui para a desorientação do
espectador ao produzir um efeito de mise-en-abyme,
nem sempre se percebendo onde começa um e acaba outro. Tudo parece confluir no
sentido de distanciar o espectador da história de Eddie e de colocar em
evidência a construção da obra e o seu carácter meta-cinematográfico, ao
incluir elementos que, por norma, ficam excluídos (claquetes, início/ fim da
película) e ao repetir cenas fulcrais da vida de Eddie - por fim
contextualizadas, o que permite ao espectador ir (re)construindo e esclarecendo
a narrativa. Contudo, o efeito Brechtiano é, como em tantos outros aspectos,
sabotado pelo carácter anárquico e transgressivo do filme: ao distanciamento
segue-se a aproximação (e vice-versa), num jogo em que a indecisão prevalece,
instituindo-se o final como uma definitiva ligação espectador – personagem. Mesmo
o tom adoptado é maleável e escorregadio, passando de modo admirável da
seriedade ao ludismo (pós-modernista): veja-se, a título de exemplo, a cena em
que o trio de travestis encontra na rua um trio/gang feminino e o que se lhe
segue.
Confundir
e desorientar constituem, então, duas das palavras-chave do filme; feminino e
masculino confundem-se nas personagens dos travestis, alguns deles tão femininos
que enganam o olhar, também ele propositadamente levado ao engano pelos
espelhos omnipresentes; a inversão da imagem é, ela própria, reflexo da vida
das personagens, da confusão de géneros e da convulsão política e social da época
- assinale-se a perturbante cena em que um Eddie adolescente beija o seu
reflexo, narciso descobrindo a sua beleza nos lábios pintados, ou, ainda, Eddie
rodeada de espelhos a colocar uma peruca, com a câmara a funcionar como um.
Tido
como uma influência directa em Laranja
Mecânica (1971), de Stanley Kubrick (e não é difícil compreender porquê), Funeral Parade of Roses convoca e
confunde na sua estrutura feminino e masculino, ficção e realidade, sexo e morte.
Com um final surpreendente (e que não se esquece com facilidade, como, aliás,
toda a obra), o filme coloca em primeiro plano questões de identidade (sexual)
e de género alinhadas com questões da ordem do político. No seu poder
transgressivo de pisar riscos, no tratamento de temas tabú e no modo delirante de
o fazer, não se terá visto nada igual antes de Funeral Parade of Roses e muito pouco se lhe terá aproximado
depois.
Toshio Matsumoto, Bara no sôretsu (Funeral Parade of Roses), 1969
Publicado originalmente no Argumento (Abril de 2015)