sábado, 8 de abril de 2017

Funeral Parade of Roses

Aparentemente, o título parecer revelar tudo: Funeral Parade of Roses: morte e sexo. No entanto, apenas diz uma fração do que o filme na realidade é; tal como a personagem principal, o título revela-se enganador e incompleto na sua aparência – a aparência é, aliás, fulcral para Eddie e para os restantes travestis que povoam o mundo em que se move. Não será por acaso que, na cena em que este se encontra numa exposição, se ouve uma voz gravada que discorre sobre o uso de máscaras na vida de cada indivíduo. Porém, à aparência contrapõe-se a autenticidade: para os travestis esta dicotomia (e o filme assenta numa série delas) é mais do que natural: “Não poderia ser de outro modo”, “Nasci assim”.



Com uma narrativa apoiada em Édipo Rei e transposta para o underground de Tóquio, Funeral Parade of Roses gira à volta de Eddie, um jovem travesti que trabalha no (apropriadamente chamado) Bar Genet, e do triângulo amoroso que forma com Leda (a Madame do bar) e Goda (o dono, também traficante de droga). Num belo preto e branco, a história de Eddie mistura-se com a história do país, ambas atingidas por convulsões internas; assim como a política deve ser feita por todos, em cada dia, não se confinando aos seus profissionais, também a ortodoxia sexual deve ser posta em causa e outras sexualidades devem ser trazidas para a luz do dia. E, claro, também novos modos de filmar e de construir um filme se impõem.
Rodado em 1968 e estreado no ano seguinte, Funeral Parade of Roses impõe-se como uma obra do seu tempo e, em simultâneo, à frente dele; convocando a turbulência político-social que assolou o Japão (e o Ocidente) no final dos anos 60 e várias vanguardas artísticas (Dada, Surrealismo, Nouvelle Vague, cinema experimental – Jonas Mekas é, aliás, citado no filme), Toshio Matsumoto junta-lhes banda desenhada, pintura, happenings, música, citações e símbolos vários para se sair, no final, com uma obra heteróclita, iconoclasta e soberba. O próprio modo de filmar é difuso e desorientador, incorporando em si significativas disrupções: cenas em sobre-exposição, rápidos e repentinos inserts, imagens de televisão distorcidas, fotografia, muito grandes planos, imagem e música em aceleração, súbita paragem do filme, interrupção da banda sonora, etc.
O carácter visual anárquico é acompanhado / acompanha a pulverização da estrutura diegética da obra, nem sempre fácil de apreender, já que a história de Eddie, dada em episódios curtos e sem aparente relação entre si, choca com outras histórias e cenas: a rodagem de um filme erótico / pornográfico (no qual Eddie parece ser personagem principal), manifestações na rua, entrevistas (numa aproximação ao documentário) com pessoas exteriores ao filme e com os seus actores (discorrendo sobre travestismo e sobre o filme que estão a rodar), etc. O próprio filme dentro do filme também contribui para a desorientação do espectador ao produzir um efeito de mise-en-abyme, nem sempre se percebendo onde começa um e acaba outro. Tudo parece confluir no sentido de distanciar o espectador da história de Eddie e de colocar em evidência a construção da obra e o seu carácter meta-cinematográfico, ao incluir elementos que, por norma, ficam excluídos (claquetes, início/ fim da película) e ao repetir cenas fulcrais da vida de Eddie - por fim contextualizadas, o que permite ao espectador ir (re)construindo e esclarecendo a narrativa. Contudo, o efeito Brechtiano é, como em tantos outros aspectos, sabotado pelo carácter anárquico e transgressivo do filme: ao distanciamento segue-se a aproximação (e vice-versa), num jogo em que a indecisão prevalece, instituindo-se o final como uma definitiva ligação espectador – personagem. Mesmo o tom adoptado é maleável e escorregadio, passando de modo admirável da seriedade ao ludismo (pós-modernista): veja-se, a título de exemplo, a cena em que o trio de travestis encontra na rua um trio/gang feminino e o que se lhe segue. 


 
Confundir e desorientar constituem, então, duas das palavras-chave do filme; feminino e masculino confundem-se nas personagens dos travestis, alguns deles tão femininos que enganam o olhar, também ele propositadamente levado ao engano pelos espelhos omnipresentes; a inversão da imagem é, ela própria, reflexo da vida das personagens, da confusão de géneros e da convulsão política e social da época - assinale-se a perturbante cena em que um Eddie adolescente beija o seu reflexo, narciso descobrindo a sua beleza nos lábios pintados, ou, ainda, Eddie rodeada de espelhos a colocar uma peruca, com a câmara a funcionar como um.
Tido como uma influência directa em Laranja Mecânica (1971), de Stanley Kubrick (e não é difícil compreender porquê), Funeral Parade of Roses convoca e confunde na sua estrutura feminino e masculino, ficção e realidade, sexo e morte. Com um final surpreendente (e que não se esquece com facilidade, como, aliás, toda a obra), o filme coloca em primeiro plano questões de identidade (sexual) e de género alinhadas com questões da ordem do político. No seu poder transgressivo de pisar riscos, no tratamento de temas tabú e no modo delirante de o fazer, não se terá visto nada igual antes de Funeral Parade of Roses e muito pouco se lhe terá aproximado depois.


Toshio Matsumoto, Bara no sôretsu (Funeral Parade of Roses), 1969


Publicado originalmente no Argumento (Abril de 2015)

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