The Pornographers abre com um a reunião de quatro homens e de uma mulher numa movimentada zona urbana; da cidade passa-se para uma floresta, local onde as personagens se preparam para a rodagem de um filme pornográfico. A cena seguinte mostra os três homens da equipa a verem e a comentarem o que, presumivelmente, filmaram. Dos pornógrafos, a câmara passa ao filme: o pequeno rectangulo, no centro do nosso, mostra um peixe e ouve-se em off a perplexidade: que peixe é aquele e o que faz ali? O plano seguinte mostra o exterior de uma casa, o rectangulo alarga-se até se fundir com o nosso; a câmara desloca-se para, através de uma janela, mostrar um casal em jogos eróticos.
Um filme dentro de um filme, então. Dos três pornógrafos, um vai ocupar o interesse da narrativa: chama-se Ogata e é ele que se encontra deitado com a mulher. Viúva, com dois filhos adolescentes, Haru tomou Ogata como amante. E a família dela passou a ser a dele: Koichi, filho cujos caprichos Haru aceita sem real oposição (com um subtexto de relação edipiana), Keiko, filha perturbada na sexualidade que desponta, e uma amante que acredita que o primeiro marido reincarnou numa carpa. O lugar como chefe de família obriga Ogata a ganhar dinheiro não só com a produção de filmes pornográficos, mas também com outras actividades ilegais, todas ligadas ao desejo e ao sexo. Contudo, mais do que um modo de vida, Ogata vê a sua função como algo necessário à sociedade, um meio de dar aos homens um objectivo na vida. Para além dos problemas com a lei, Ogata também não se furta a problemas com outros que estão fora e dentro da lei: gente que lhe extorque dinheiro - yakuzas locais, os enteados, o namorado e a professora de Keiko - ou que o engana e rouba, como Koichi e um dos sócios. Tudo se resume a dinheiro, como dirá Keiko no final, e este fim justifica os meios. Contudo, ninguém se justifica (ou tem de se justificar) perante a lei – apenas Ogata tem de o fazer.
O exterior do início vai contrastar com o resto da obra, repleta de interiores, filmados recorrentemente de fora, através de janelas ou de gradeamentos. O fechamento dos espaços reflecte a clausura existencial das personagens, incapazes de fugir às suas contingências. A divisão interior / exterior também cria, melhor, impõe um distanciamento entre personagens e espectador, forçando este a tomar consciência do seu olhar de voyeur. E, claro, o voyeurismo e a importância do olhar não faltam no filme, existindo mesmo uma cena em que o padrasto observa escondido a enteada. Dir-se-ia que a situação foi provocada pelo acaso, mas tal sucede porque Ogata vai buscar pornografia ao esconderijo: Keiko veste-se, atira com um pé a roupa interior para um canto e sai. Ogata não abandona o seu lugar; ao sentir o aroma da roupa da adolescente, dá-se um flashback: Ogata acompanha Keiko, ainda criança, a caminho da escola e ela foge, sendo atropelada. Como mais tarde se verá, as marcas irão permanecer na sua perna esquerda: as suas cicatrizes constituem a face visível do que nos outros é invisível: a mancha no carácter.
Os diversos e inventivos dispositivos formais reflectem, metonimicamente, (sobretudo) a personagem principal: dividido entre duas mulheres (Haru e Keiko) e entre a respeitabilidade social e as actividades ilegais /imorais, Ogata mostra-se impotente (literal e metaforicamente), tal como, de outras formas, todos os da família. O caixilho central das janelas reflecte-se, em sombra, no corpo e no rosto de Ogata, indiciando barras de uma cela e a culpa sentida pela personagem, incapaz de resistir à tirania do desejo.
O mesmo caixilho funciona, em algumas cenas, como um separador da tela, dividindo-a em duas; temos, deste modo, duas telas num filme dentro de um filme. O motivo do duplo encontra-se reforçado, por exemplo - e de forma perturbante-, em duas cenas: na primeira, a equipa prepara-se para filmar, sem sucesso, uma adolescente em farda de estudante e um velho com bata de médico. A rapariga, deficiente mental e desassossegada, não obedece às indicações que lhe são dadas, apenas acalmando com os doces que o velho lhe dá - no final, os pornógrafos descobrirão que se trata de pai e filha (o que vai provocar divagações filosóficas). Na segunda cena, Ogata chega a casa e veste a bata de médico. Encontrando Keiko na cama, febril, vai buscar o comprimido que ela não tomou e um copo de água. Keiko oferece-lhe um beijo que ele primeiro recusa, para depois aceitar. Prestes a beijarem-se, são interrompidos – significativamente – pela polícia.
The Pornographers evidencia, assim, disrupções diegéticas e formais, em que a extraordinária inventividade formal acompanha a perturbação das personagens e da narrativa: sonhos, fantasias, analepses, mundo real rompendo as margens do mundo ficcional, paragens da imagem, ângulos de câmara pouco usuais e, mesmo, um ponto de vista inesperado: o da carpa que nada no aquário (fabulosos, os planos através do aquário). No final, a imagem reduz-se ao pequeno écran do início e regressamos à realidade, ainda não a nossa, mas a dos três homens-espectadores. O espanto enunciado no começo não se repete, antes a curiosidade natural: ele vai morrer? O filme deles termina e, segundos depois, o nosso. Sim, vai morrer? Todos vamos morrer. Todos vamos morrer sozinhos. Pelo menos, Ogata teve a sorte de escapar aos homens e à sua insídia. E nós?
Shohei Imamura: The Pornographers(1966)
Publicado no nº 151 do Argumento, Abril de 2016
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