quarta-feira, 2 de maio de 2018

Branded to Kill



Branded to Killassemelha-se a um sonho (ou a um pesadelo), onde a estrutura narrativa ou as personagens possuem muito pouco de linear, parecendo, com frequência, obedecer a uma lógica exterior à racionalidade. Quem o vir com olhar desprevenido rapidamente se apercebe que o filme exige muito mais, sob pena de perder elementos que (aparentemente) são cruciais para a compreensão da diegese.E, ainda assim, não é certo que uma segunda visão (e terceira…) se imponha. Aquilo que, inicialmente, se apresenta como uma história à volta de um assassino contratado (Hanada, desempenhado pelo grande Joe Shishido) e dos seus perigosos trabalhos, rapidamente se transforma numa outra coisa nas mãos de Seijun Suzuki. Apesar das influências do film noir, da Nouvelle Vague ou do Surrealismo, Suzuki deixa muito claro, e muito cedo, que está disposto a ir muito mais além: alicerçado em elipses e em disrupções espácio-temporais, o filme tem, de facto, em Hanada a personagem central que deixa atrás de si um rasto de destruição (nem sempre por sua vontade, acrescente-se), mas tudo em Branded to Kill se encontra a uma distância gigantesca dos arquétipos inscritos nos filmes noirs/ de yakuza. 



De regresso ao Japão, acompanhado de Mami, sua mulher, Hanada regressa, também, ao seu métier. E é excelente no que faz; mais do que profissional, revela-se um verdadeiro artista, um criador que utiliza a imaginação e a criatividade para fazer do assassínio uma das belas-artes. Senão, vejamos: Hanada, escondido por um gigantesco cartaz publicitário, a disparar pela abertura que lhe é oferecida por um dedo mecânico que acciona um isqueiro, Hanada a matar com um tiro disparado através da canalização de um lavatório (ideia posteriormente utilizada por Jim Jarmusch no seu Ghost Dog: The Way of the Samurai), Hanada a escapar à boleia de um enorme balão de ar (publicitário, mais uma vez). Porém, isso apenas faz dele o assassino n.º3, o que significa que existem dois ainda melhores – aliás, o n.º1 é tão bom que ninguém conhece a sua identidade.







A violência encontra-se, frequentemente, imbuída de erotismo - e vice-versa. Erotismo, amor e agressão física misturam-se, num turbilhão que Hanada sabe ser perigoso e letal para um assassino (que é suposto ser frio e calculista). As mulheres representam mais perigo para Hanada do que as vítimas que mata; Mami atraiçoa-o em mais do que uma maneira e uma das suas clientes, Misako, femme fataleque quer ver outros morrer, mas que, também ela, deseja a morte, vai transformar-se numa obsessão, raiz de cogitações e lutas interiores metafísicas. O facto de falhar o trabalho ordenado por Misako (devido a um pormenor casuístico, mas simbolicamente relevante), vai transformar Hanada em caça. E de assassino n.º3, vai percorrer um caminho de destruição até enfrentar o seu caçador, o assassino n.º 1. Acossado, Hanada, envolto em luz e sombras, num belo preto e branco, atravessa Tóquio, não se furtando a confrontos, mesmo quando está numericamente em desvantagem. 
A violência encontra-se, igualmente, contaminada pela comédia, por vezes mesmo pelas extravagâncias do desenho animado (pense-se, por exemplo, nas animações de Friz Freeling ou de Chuck Jones para a Warner Bros.): o que dizer do fetichede Hanada, a sua obsessão descontrolada pelo aroma do arroz a ser cozinhado? Mami e Hanada num bar: ela pede um Whisky duplo e ele, perante o olhar atónito do barman, arroz cozido. E no primeiro trabalho que executa, Hanada e outro assassino com quem faz equipa vêem-se alvo de uma emboscada, o companheiro comportando-se como um mimo aos saltos enquanto as balas silvam à sua volta. Contudo, Suzuki rapidamente abandona esse tom para instalar o da violência e da morte: o comic reliefexiste como uma etapa para se chegar ao que verdadeiramente importa: a resolução de problemas - e, essa, apenas se alcança com uma arma pronta a disparar. 
Tudo é filmado com uma destreza espantosa (ainda por cima, a fazer fé no testemunho do realizador, quando a planificação era algo que desprezava); a utilização da câmara não só acompanha a desconstrução e a fragmentação narrativas, como as acentua (embora a utilização de raccords seja esplendorosa), picados e contrapicados, ângulos bizarros, e aqueles belos travellingsno apartamento de Hanada. 



A sua casa, e a utilização que lhe é dada, valeriam por si só todo um ensaio; construção do Japão moderno do pós-guerra, muito longe das casas tradicionais, como se Hanada quisesse abandonar o passado e abraçar o futuro (tendo meios para o fazer, evidentemente), nunca é filmada como um lar: de arquitectura peculiar, geométrica, com compartimentos onde menos se espera, o interior é sobretudo lugar de sexo e de confronto / martírio imposto pelo n.º1 (mas, mais uma vez, também de burlesco). (A casa de Misako tem, igualmente, muito pouco de lar, com centenas de borboletas mortas nas paredes e em teias onde Hanada se enreda.)



No final, há um ringue de boxe, o centro iluminado enquanto o resto do pavilhão se encontra na penumbra, todas as cadeiras vazias, uma luta sem espectadores. Hanada e o n.º1: algumas palavras e tiros. E interrogações: Misako entra na sala, em estado debilitado (consequência de tortura por fogo), e morre com um tiro do homem que a ama: Hanada acede por fim ao desejo da sua amada? Ou, em vertigem, dispara sem se dar conta de que é ela? O seu inimigo é morto: Hanada é o n.º1?

Seijun Suzuki (Japão, 1967)


Publicado originalmente no Argumento, nº 156 (Dez 2017)


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