domingo, 28 de abril de 2019

I Walked with a Zombie




Um plano belíssimo de uma praia, o céu profundo, por onde se espalham manchas brancas; será, talvez, um fim de tarde de verão. Duas pessoas passeiam à beira-mar, uma silhueta altíssima e outra mais pequena, e uma voz offfeminina que introduz o flashbackque constitui o filme. 
Um antes e um depois.
Estabelece-se um contraste em tempos meteorológicos e geográficos: a quietude  da praia, o clima quente da ilha Saint Sebastian, nas Caraíbas, com a neve que cai em Otava. Uma jovem enfermeira, Betsy, que aceita trabalho onde há palmeiras:  “Palm trees”, diz ela, em eco, enquanto o plano se fecha em fade outao negro. 
Um barco, o mar cintilante ao luar, as estrelas, Betsy e Paul Holland, o seu empregador: nada é o que parece, “everything seems beautiful because you don’t understand”, afirma ele. Este pedaço de terra está morto. Morto como o coração dele, enterrado no corpo de um vivo. E mais mortos-vivos: o seu meio-irmão, Wesley, que ama uma mulher morta-viva, que ama a mulher do seu meio-irmão - ambos em conflito, o mais velho, circunspecto, o que governa a família e o seu negócio, o mais novo, o que bebe. Ambos com feridas por fechar, um que ama a mulher que o outro amou. E Jessica, em profundo estado letárgico, após uma febre inexplicável, submersa no silêncio que envolve o seu corpo. 
Chegada à ilha, Betsy vai encontrar uma terra de ilusões, onde a paisagem idílica esconde a turbulência do que permanece oculto, onde forças opostas se digladiam, onde realidade e ficção se misturam. Na bela casa colonial de Paul Holland, no jardim, encontra-se uma figura retirada da proa de um navio negreiro: os negros chamam-lhe Ti-Misery, São Sebastião sob o martírio das flechas, para que ninguém esqueça de onde veio a fortuna da família e a que custo. 
Na bela casa colonial de Paul Holland o sol permanece no exterior, as sombras no interior; a oposição luz/sombra espalha-se pela casa, as linhas horizontais dos estores projectam-se sobre as pessoas, as paredes, os móveis: barras que encarceram as personagens em luta consigo próprias. E no exterior da habitação, o luxuriante jardim também espalha as suas sombras, dia e noite. Apesar de todas as aparências em contrário, este é um mundo fechado (e é uma ilha, não esqueçamos), onde forças misteriosas se encontram à espreita. I Walked with a Zombiepode ser uma série B, mas, apesar disso, ou por causa disso, tudo é representado com uma subtileza notável (veja-se, por exemplo, a forma como é criado o “terror” a que o título, de forma hiperbólica, alude). O que se insinua, o que fica não-dito revela-se um poderoso modo de instilar inquietação e medo, uma demonstração assombrosa de como utilizar os (parcos) recursos materiais e os (muitos) recursos criativos de que Tourneur e Lewton (realizador e produtor) dispunham.


As sombras são amplificadas pelos sons da noite: tambores tribais, um choro de mulher que atrai Betsy. Não se trata de Jessica, que não sai do seu mutismo, mas o choro de uma mãe-criada-negra ao dar vida a um ser que vai viver naquela ilha. Mas é o choro que faz com que as duas mulheres se encontrem: na noite, Betsy de negro, Jessica de branco, Betsy, a enfermeira que veio para tratar a morta-viva, Jessica a que se encontra nas profundezas de um outro mundo.
A tragédia de Jessica e dos Holland já faz parte do folclore local, assim o demonstra um negro que canta, de forma inadvertida, uma história que serve para que Betsy (e o espectador) fique a conhecer o passado da família e da ilha. Quando chamado à atenção de que Wesley se encontra na esplanada, o cantor interrompe-se e vai de imediato pedir desculpa ao senhor branco (e há sempre subjacente uma crítica à escravidão). Mas, mais tarde, quando é já noite e Wesley se encontra em estado inconsciente (da bebida), aquele recomeça a cantar,  a canção já devidamente actualizada com a chegada da enfermeira. A prestação termina de forma abrupta quando surge Mrs. Rand, a mãe de Wesley (e de Paul). Tal como sucedeu com Jessica, Betsy toma conhecimento com aquela por acaso.  Em segundo plano, ausente do que nos é dado ver (como muito no filme), esta já se inteirou do que Betsy representa para a vida de todos e, sobretudo, para a de Paul: por esse motivo, que  peça ao filho para mandar tirar a garrafa de whiskey da mesa de jantar. Ele recusa, mas ao jantar a garrafa já não está lá. Wesley irrita-se, mas Paul não volta atrás. E eis-nos perante um dos eixos do filme: o amor. Paul toca piano numa sala que o isola dos outros (e é filmado de costas) – Betsy entra no mundo dele, mas ele, após um breve baixar de armas, recompõe-se e pede-lhe para sair (e ouvem-se os tambores). Ela ama-o, confessa-o ao mar, o mar que a trouxe e onde conheceu Paul. Betsy não esquece que ele é casado; a sua felicidade será fazê-lo feliz ao curar Jessica. 






Mas, por agora, chega de amor. Eis-nos na noite do vodu. Alma, uma das criadas da família, fala a Betsy de poderosos poderes sobrenaturais. E a enfermeira decide tentar – afinal, o que pôde a ciência? Pelo meio dos canaviais, seguindo o caminho assinalado por estranhos objectos e guardado por um gigante negro chamado Carrefour (simbólico, não?), também ele em estado letárgico. O vento sopra, imaginamos que quente, doentio, os tambores tocam (e tocam várias vezes durante o filme, uma presença em surdina, à espreita), percurso e cerimónia, duas das sequências mais belas do filme. (Já mencionei o belo preto e branco?) O deus vodu fala por Mrs. Rand, escondida atrás de uma porta. E os nativos cortam o braço de Jessica: com espanto, verificam (e nós também) que ela não sangra. Betsy salva Jessica do sumo sacerdote vodu, que, tendo-a tido uma vez, a quer para sempre.
E eis que surge a inevitável questão: o que aconteceu, exactamente, a Jessica? O que éJessica? E como libertá-la? Ninguém sabe, excepto o sacerdote vodu e Wesley. Há uma faca e uma flecha de São Sebastião. E há o mar,  onde Wesley e Jessica se banham, alcançando, por fim, a liberdade que nenhum alcançou neste mundo. 
O que pode o amor de Betsy e de Paul perante isto? Nada.


I Walked with a Zombie, Jacques Tourneur (EUA, 1943)


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