domingo, 10 de novembro de 2019

Joaquim Manuel Magalhães

Acendimento

Seria bom sentir no quarto qualquer música
enquanto nos banham os perfis ateados
pelo aroma da tília, sem voz, em abandono.
A entrada por detrás das ruas principais
onde a morrinha parece que nem molha
e se chega perdido onde se vai.
Não, não é só um beijo que te quero dar.

Quantas vezes nesta hora de desvalimento 
vejo orion e as plêiades devagar no céu de inverno. 
Mas hoje 
com a calma inesperada de chuvas que não cessam 
acordo já depois. Caí numa hibernação que não norteia 
o desequilíbrio do sentimento. 

Espelhos sem paz tocam-nos no rosto. 
Na cega mancha de roupagem aconchego 
cada intempérie com sua mentira 
e depois sigo pela torrente, pelo enredo 
dos outeiros, cada espelho continua 
a caução pacificadora do engano. 
É isso que te levo, isso que me dás 
quando dizes, já sem o dizeres, eu amo-te. 

Pela berma da humidade cerrada 
um risco de mercúrio trespassa. 
Na gravilha passos que não há 
esmagam a música que ninguém escuta. 
Sabiam de cor tudo o que falhava, 
a insónia repentina, o entorpecimento. 

Ouve a espessura dos nervos, a sua câmara 
de conchas escavadas, a roseira azul do vime, 
pastos químicos que transformam 
o gradeamento acolhedor detrás do cérebro 
na fauce lacerada 
por onde o alibi imóvel parece fugir. 

Ao lado cantam os arpões. 
Eu passo com as mãos no seu cabelo. 
E o passado é um tempo que não passa 
em cada uma das dores que me pertence 
e me roubaram. 

Aquele que tem fome desconhece 
o alimento, pede apenas folhas, 
a farinha de um vestuário com uso 
e desmedido. 
Mas o que sempre comeu 
não sabe os caminhos que sangram 
e um dia a morte só lhe trará terror. 

Acordei cansado com os sonhos. 
O rosto que foi amado e se perdeu 
cintilava na roldana de corrente cega, 
a floresta em carvão acorrentava 
o pavor agrícola da pobreza, 
e dentro do sonho um sonho mais disforme 
mãos que sabiam sempre agarrar tudo 
o que não fosse qualquer outra mão. 

Sorria para o asfalto. Com o casaco 
desabotoado e o embrulho em cima da carrinha. 
As nuvens corriam pelo chão de aguaceiro. 
Findavam para si minúsculas assombrações. 
Correu a mão sobre a testa, ergueu 
o cabelo que fervia. 
Vi-o inclinado sobre nada, 
o pó fazia goma nos seus pés, 
estava eu defrontado com um vulto 
entregue à felicidade. 

Quando me viu levou o embrulho 
para o banco de trás e trancou as portas. 
Tinha a cara azul, os olhos de vinho antigo, 
fez-me um sinal desconhecido 
antes de reabrir a porta e me fechar 
na cidade inteira onde já não existia. 

Um fato de flanela cai muito bem 
numa tez esguia, batida pela neblina. 
Cortei-lhe as calças com a lâmina pequena 
e guardei a maior para a suavidade tardia 
junto do empedrado 
onde num clamor sem verdade 
o morto caminho de volta diz 
tristes de todas as coisas. 

Os braços por cima do seu tronco 
a lua nova as constelações o ruído da terra 
um vivo círculo mortal em seu redor. 

(Alta Noite em Alta Fraga, 2001)



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