sábado, 18 de fevereiro de 2017

Uivo





Sendo a memória o que é, eu diria que terá sido pelo verão de 1983; ou talvez a primavera desse ano tenha sido demasiado quente, talvez o calor do verão tenha entrado Outono dentro… Não sei, apenas tenho o calor colado à memória. Verão de 83. Bonito quando se escreve e quando se lê.
Em casa, quando não estava a ouvir discos ou cassetes, estava com o rádio ligado. Ouvia imenso, ouvia e conhecia todos os êxitos que a rádio passava. Era um adolescente informado, pensava eu. Uma rotina ininterrupta. Até que, numa tarde de verão, pensei que todas aquelas músicas se pareciam demasiado umas com as outras. Para afastar o tédio, comecei a rodar o sintonizador do rádio e, desprevenido, vou parar a uma estação onde apanho um tema que nunca tinha ouvido – facto que achei completamente bizarro. Julgo que terá sido a curiosidade de identificar aquele objecto estranho, aliada à absoluta frescura da música, que me fizeram permanecer ali, em silenciosa atenção. Seguiu-se outra música, tão desconhecida quanto a anterior e ainda mais excitante. Depois, entrou a voz, aquela voz poderosa e que condizia na perfeição com toda a música que passou até ao fim do programa. Todas as canções tocadas me eram desconhecidas e todas elas me pareceram soberbas (penso que me lembro de “Rainy Season” de Howard Devoto, de “She’s in parties” dos Bauhaus e, talvez, Wall of Voodoo – “Lost Weekend”? “Ring of Fire”? – até os nomes das bandas eram excitantes: Bauhaus, Wall of Voodoo, The Cure, Cabaret Voltaire, The Fall…  Mas talvez Wall of Voodoo tivesse sido no “caldeirão” de 1984. Lembro-me:  “Sexbeat” dos Gun Club ocupava o primeiro lugar).  
E foi um mundo que se abriu para mim. Uma descoberta que arrastou consigo outras descobertas e outros mundos. Outras maneiras de fazer música, de ouvir música, de viver. No dia seguinte estava lá outra vez e em todos os outros dias. Neófito, escrevia os nomes dos grupos e dos temas num caderno, não fosse esquecer-me de algum (cruzes, canhoto!)... Cassete pronta e os dedos no Rec e no Pause - que outra maneira tinha eu de, em Viseu, ouvir aquelas canções fora do horário do programa? (Evidentemente, as cassetes foram tocadas centenas de vezes e ainda guardo grande parte delas.)
O “Som da Frente”, que passava sempre demasiado rápido, era um luxo para quem, como eu, ainda estava a uns anitos de ir para Lisboa. Era uma saída para um mundo inteiro, para Londres e Manchester, Nova Iorque e Los Angeleles, para cidades onde as coisas aconteciam, onde pessoas faziam as coisas acontecer. Nunca mais a minha vida foi a mesma: foi a ouvir o programa que soube que a música faria parte de mim para sempre, como se, naquele momento de epifania, me tivesse verdadeiramente entrado no corpo e no espírito. E depois fui seguindo a voz por outros programas: o “ Lança-chamas” (embora a minha fase metal fosse bastante efémera) e o “Loiras, Ruivas ou Morenas” (o António e a Ana Cristina – e nunca consegui descobrir de quem era o genérico… - mas a Ana Cristina estava sempre lá, numa verdadeira partilha).
Nunca conheci o António Sérgio – lembro-me de ter ficado espantado quando o vi numa publicidade ao “Som da Frente” (num número da Música & Som); aquele rosto não era , de todo, o que eu tinha, nebulosamente, formado na minha cabeça. Vi-o uma única vez, num começo de noite em que andava com uma amiga a deambular pelos eléctricos de Lisboa. Éramos os únicos passageiros, a luz amarela desmaiada, a cidade a passar muito devagar. E, de repente, ambos nos levantámos e gritámos: “Olha o António Sérgio!”. Quisemos sair, mas a séria autoridade do condutor informou-nos que apenas podíamos sair na paragem seguinte. Acho que, para mim, foi um alívio – que lhe ia eu dizer, a timidez a enrolar-me as palavras? Um obrigado que talvez nenhum dos presentes iria perceber (incluindo eu – mas que raio é que acabei de dizer?), fazendo uma figura ridícula que ele iria levar rua fora enquanto sorrisse e pensasse na gente maluca que andava por Lisboa... 
Depois foi aquele percurso repleto de acidentes, horários madrugada dentro, impossíveis de seguir por quem tinha que despertar a horas escandalosas, mudanças de rádios - sim, houve a pequena esperança chamada XFM, mas tão efémera... - e a barbarização da rádio (que acompanhou a dos outros media, principalmente a da televisão), a ideia sinistra das playlists, a implantação da total boçalidade (na rádio e na sociedade) e a recusa de reconhecer o outro, de aceitar a existência do outro. Ainda e sempre “o direito à diferença”, talvez hoje como nunca.

Obrigado, António.   



Texto publicado (truncado) em O Uivo da Matilha - tributo a António Sérgio e à Rock 'n' Roll Radio (El Pep / Raging Planet / RR / Glam-O-Rama Rock Shop,  2014)

Sem comentários:

Enviar um comentário