segunda-feira, 11 de setembro de 2017

s/ título


os cães anunciam o regresso dos caçadores que 
em breve estarão na casa, os passos mais pesados, talvez;
a voz continua: como posso assegurar-te as qualidades
do meu amor, o seu tempo de vida, a resistência
aos dias? não darei vida à tua morte e estou longe 
de ser um detective a preto e branco – vês no meu olhar 
algo que pressagie o seu olhar, o fogo ao verificar 
que o seu amor trouxe por fim uma Eurídice 
dos mortos? há outra voz, isto é, naquele instante 
voz nenhuma: hesita, procura as palavras: como assegurar 
a eternidade do fim dos filmes? (lembrei-me: as vozes existem
no silêncio?) outros passos agora, de novo em direcção 
à janela, já os vejo. (sim, suponho que sim – falo sempre 
quando estou só, asseguro-me que ainda existo, 
que ocupo um espaço). e depois, mais nada: 
a casa invadida, o entusiasmo das crianças, alguns 
cadáveres ainda com o sangue quente.     

Josef Koudelka














Álbuns que precisam urgentemente de ser editados em vinil (ou, vá lá, em CD).



Gosheven: Leaper (Opal Tapes, 2017)




Sote: Sacred Horror in Design (Opal Tapes, 2017)

Pale Flower







Uma estação de comboios, os pés de um homem que caminham contra a corrente, uma voz off: “People, such strange animals. What are they living for? Their faces are lifeless, dead. They are desperately pretending to be alive.”. O pessimismo / niilismo é metaforicamente acompanhada pelas imagens, com a câmara (subjectiva?) indecisa nos rostos em que se deter, incapaz de escolher e de fixar, passando em movimentos rápidos pela multidão: “It makes my head spin”. A voz anuncia um regresso a Tóquio após três anos e, no atropelo de um comboio, a câmara escolhe o sapato de um homem sentado, a perna cruzada; será o homem da voz off, mas ainda não lhe conhecemos o rosto (e é impossível não nos vir à memória a abertura de Strangers on a Train, de Hitchcock). A voz diz-nos mais: trata-se de um assassino que acaba de sair da prisão, despojado de quaisquer remorsos. 
Uma sala de jogo ilegal: uma porta desliza, um homem deixa os sapatos na entrada; saindo da sombra, vemos-lhe, por fim, o rosto. E outra personagem dá-lhe um nome: Muraki. “I see nothing’s changed. But why should it?” No entanto, engana-se: do meio dos homens, surge uma mão feminina. A expressão é neutra, imperturbável na espécie de transe em que se encontra; ganha e recolhe as notas com enfado - não se encontra ali para ganhar dinheiro, não é isso que a anima. Muraki observa-a, sentado à sua frente, mas ela não retribui o olhar, embora talvez o sinta. Só quando ele entra em jogo, estendendo o dinheiro, é que o olhar dela se dirige para ele, para logo se retrair. E o título surge sobreposto à imagem feminina: flor pálida ou, numa tradução literal, flor seca. No final da noite, Muraki deseja saber mais da jovem mulher, mas o seu interlocutor pouco lhe pode adiantar.
Da desconhecida para a amante: Muraki visita, de surpresa, a relojoaria onde esta vive. Da sombra, entra para luz - e há, significativamente, um néon em espiral nas suas costas -, para uma amante incrédula perante aquela visita tardia, como se de um fantasma se tratasse. Aquela fogosidade, nunca Muraki a irá demonstrar com Saeko, a jogadora, mesmo quando tem oportunidade para isso. E, contudo, este desejo, dir-se-ia incontrolável, para com Shinko, teve de esperar até bem dentro da madrugada, depois da visita ao chefe e do jogo - e depois de Saeko. Esse desejo que, quanto mais Muraki e Saeko se aproximam, mais se desvanece. Como se Saeko transmitisse a Muraki a coragem para dar por terminada uma relação (física) desprovida de significado – agora é ela a oferecer-lhe a possibilidade de um sentido. 



A relação com Saeko aprofunda-se porque ambos parecem ser reflexos um do outro no vazio que os habita. Ambos perdidos numa imensa solidão, na incapacidade de tocarem e de serem tocados. Saeko procura algo que a aproxime da vida, e que pode ser o jogo, a velocidade de um carro ou a droga. Movendo-se num mundo (sobretudo) nocturno, em ruas iluminadas por néons, no submundo da grande cidade, Muraki encontra-se preso na misantropia que experimenta, rodeado de “dumb beasts”, num quotidiano anódino desprovido de emoções e de significado. Sabe que tudo não possa de uma busca votada ao fracasso e, no entanto, não enjeita o inebriamento que Saeko lhe oferece; poderá ser fugaz, poderá mesmo reduzir-se ao fracasso, mas será uma tentativa, ou, pelo menos, uma anestesia. Poderá ser, também, um jogo. 
A afectividade que Muraki demonstra para com a jovem jogadora é das poucas emoções que lhe vemos, mas Muraki e Saeko na mesma cama não significa sexo: ele observa-a com cuidado e a tentação é anulada pela consciência de que não será o sexo a uni-los. Nem com os restantes yakuzas, nem com o chefe, nem mesmo com o rapaz que o admira (e que se torna uma espécie de aprendiz), se vislumbra qualquer emoção; a afectividade - se existe - permanece elidida. Tudo parece ser-lhe indiferente, mesmo o respeito e a admiração dos seus pares (e a que não será alheia a absoluta coolness que exibe). O submundo dos yakuza invadido pela fatalidade e pelo pessimismo do film noir ; na realidade, haverá poucos (anti)heróis noirs a experimentarem tanto malaise, tanto mal de vivre como Muraki. 
A consumação da vertigem acontecerá de outra forma: o jogo, a velocidade e a droga são nada perante o que Muraki tem para oferecer a Saeko. E é nessa espantosa cena operática (metafórica e literalmente) que, apesar da distância física que as separa, as personagens enfim se ligam. No final não há redenção de qualquer tipo, apenas a continuação de uma vida que já se viveu: os yakuza, a prisão, os yakuza, a prisão.


Pale Flower, Masahiro Shinoda (Japão, 1964)




Argumento, nº 153, Novembro de 2016


domingo, 3 de setembro de 2017

Gun Club


Fire of Love (1981)


Miami (1982)



Sexbeat 81 (1984)




The Las Vegas Story (1984)



As palavras e as guitarras em fogo de Jeffrey Lee Pierce e dos seus Gun Club.

Mário Cesariny


Rua da Academia das Ciências
Procurei os teus olhos quis achar
nos teus olhos a luz que nos salvasse
mas tu não tinhas olhos tinhas plateias
no Liz, no S.Luiz e no Terrasse
Busquei teu coração, não desisti à primeira,
teu seio arfava arfava docemente
por força que por baixo que por dentro
tinhas um coração terno como gatinhos
mas afinal não tinhas coração tinhas um saco
com Jean-Paul Sartre e rendas a cinquenta o metro
De forma que o entrar nas tuas pernas
foi como entrar num Tribunal de Contas:
não tinhas sexo, tinhas um juiz de paz,
arroz, licores, outro noivo, e gritinhos
O Raul Leal era
O Raul Leal era
O único verdadeiro doido do "Orpheu".
Ninguém lhe invejasse aquela luxúria de fera?
Invejava-a eu.
Três fortunas gastou, outras três deu
Ao que da vida não se espera
E à que na morte recebeu.
O Raul Leal era
O único não-heterónimo meu.
Eu nos Jerónimos ele na vala comum
Que lhe vestiu o nome e o disfarce
(Dizem que está em Benfica) ambos somos um
Dos extremos do mal a continuar-se.
Não deixou versos? Deixei-os eu,
Infelizmente, a quem mos deu.
O Almada? O Santa-Ritta? O Amadeo?
Tretas da arte e da era. O Raul era
Orpheu.

W. Eugene Smith






















sábado, 2 de setembro de 2017